quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Qualquer tempo é tempo de "contar histórias". A "Árvore" de Dylan Thomas.




O vento e a chuva fazem o seu belo trabalho, lá fora e eu

a re(ler), cá dentro.

Dylan Thomas (1914-1953) foi um dos maiores poetas do século XX.

























Erguendo-se na casa voltada para as longínquas colinas 
Jarvis, havia uma torre que servia de abrigo a pássaros diurnos e ao redor da qual corujas voavam à noite. Vista do povoado, a luz da janela da torre cintilava como um vaga-lume através das vidraças, mas o aposento abaixo dos ninhos de pardal raramente estava iluminado; teias de aranha cobriam seu teto encardido; dava vista para mais de um quilómetro e meio do terreno acidentado da região, e seus cantos guardavam segredos onde garras deixavam marcas na poeira.
O menino conhecia a casa do teto ao porão; conhecia os gramados irregulares e o galpão do jardineiro, onde as flores jorravam dos vasos; mas não conseguia achar a chave que abria a porta da torre.


A casa se transformava ao sabor dos caprichos do menino e o gramado era o mar, ou a praia, ou o céu, ou o que quer que ele desejasse. Quando o gramado era uma sombria milha marítima e ele velejava com uma flor arrancada sobre as ondas, o jardineiro saía do galpão vizinho à ilha de arbustos. Apanhava, ele também, um caule, e velejava. Montado em uma vassoura de jardim, voava para onde o menino quisesse. Sabia cada história contada desde o começo dos tempos.
No princípio, dizia, havia uma árvore.
Que tipo de árvore?
A árvore na qual aquele melro está cantando.
Um falcão, um falcão, exclamava o menino.
O jardineiro olhava para a árvore e via um enorme falcão pousado num galho ou uma águia balouçando ao vento.
O jardineiro adorava a Bíblia. Quando o sol se punha e o jardim se enchia de gente, sentava-se à luz da vela no galpão, lendo sobre o primeiro amor e o mito de maçãs e serpentes. Mas a morte do Cristo em uma árvore era sua passagem favorita. Árvores o cercavam, e ele previa a mudança das estações pela coloração da casca e pelo jorro da seiva através das raízes encobertas. Seu mundo agia e se transformava como a primavera agia sobre os galhos, transformando sua nudez; seu Deus brotou como uma árvore da terra em forma de maçã, germinando Seus filhos e deixando que Seus filhos fossem transportados pela brisa de inverno; o inverno e a morte agiam num mesmo sopro. Sentava-se no galpão e lia sobre a crucificação, contemplando as noites de inverno por cima dos vasos na jardineira da janela. Julgava que o amor fracassa em noites assim e que muitos de seus filhos são sacrificados.


























O menino transfigurava os gramados descuidados com suas
brincadeiras. O jardineiro o chamava pelo nome da mãe e o sentava em seus joelhos e falava para ele sobre as maravilhas de Jerusalém e o nascimento na manjedoura.
No princípio, havia o vilarejo de Belém, sussurrou para o menino antes que a sineta soasse na escuridão iminente anunciando a hora do chá.
Onde fica Belém?
Muito longe, disse o jardineiro, no Leste.
A leste, erguiam-se as colinas Jarvis, escondendo o sol, suas árvores conjurando a lua escondida na relva. 
O menino estava deitado. Olhou para o cavalinho de balanço e desejou que criasse asas para que pudesse montá-lo e cavalgá-lo pelos céus da Arábia. Mas o vento do País de Gales soprou as cortinas e os grilos fizeram barulho no canteiro malcuidado embaixo da janela. Seus brinquedos estavam mortos. Começou a chorar, mas logo parou, sem encontrar razão para lágrimas. A noite estava tempestuosa e fria, ele estava aquecido sob os lençóis; a noite era tão grande quanto uma colina, ele era um garoto na cama. 



Fechando os olhos, contemplou uma vaerna rodipiante
mais profunda que a escuridão do jardim onde a primeira árvore, na qual haviam pousado os pássaros imaginários, erguia-se solitária e ardente como o fogo. Conteve as lágrimas sob as pálpebras quando pensou na primeira árvore, plantada tão perto dele, como uma amiga no jardim. Levantou-se de mansinho e foi na ponta dos pés até a porta. O cavalinho balançou, impulsionado por suas molas, assustando o menino, que voltou em silenciosa disparada para a cama. O menino olhou para o cavalo, e o cavalo estava imóvel; percorreu novamente o tapete na ponta dos pés e alcançou a porta e girou a maçaneta e foi até o corredor. Tateando à sua frente, chegou ao topo da escada; alongou a vista pela escadaria escura até o vestíbulo, discernindo uma multidão de sombras que se esgueiravam pelos cantos, ouvindo suas vozes sibilantes, imaginando as órbitas de seus olhos e seus braços franzinos. Mas elas se provariam insignificantes e furtivas e inanimadas, não blindadas por couraças invisíveis, e sim envoltas por tecidos tão diáfanos quanto teias de aranha; sussurrariam à sua passagem, tocariam em seu ombro e diriam S em seu ouvido. Desceu as escadas; nem sequer uma sombra se moveu no vestíbulo, os cantos estavam desertos. Estendeu a mão e tateou a escuridão, pensando ter sentido uma cabeça calva e aveludada se insinuar sob seus dedos e penetrar, como uma névoa, embaixo das unhas. Mas não havia nada. Abriu a porta da frente e as sombras escorregaram para o jardim. 

Ao encontrar o caminho, seus medos o abandonaram. O luar se espraiara sobre os canteiros selvagens e a geada se espalhava pela relva. Por fim, chegou à árvore iluminada no final da longa via de cascalho, ainda mais antiga que o milagre da luz, com os bichos-de-conta adormecidos sob a casca, com os galhos salientando-se do tronco como os braços congelados de uma mulher. O menino tocou a árvore; ela pareceu se inclinar ao seu toque. Ele viu uma estrela, mais clara do que qualquer outra no céu, brilhando fixamente sobre a torre dos pássaros primevos e reluzindo apenas sobre os galhos secos e o tronco e as raízes nodosas. 

O menino nunca duvidou da árvore. Rezou para ela, ajoelhado sobre os gravetos enegrecidos que o vento noturno derrubava no chão. Depois, trêmulo de amor e frio, correu de volta pelos gramados em direção a casa. 

Havia um idiota a leste do condado que errava pela região como um mendigo. Ora à porta de uma casa de fazenda, ora à porta do chalé de uma viúva, ele mendigava o pão. Um pároco lhe dera um paletó que se enlaçava em volta de suas costelas e ombros esqueléticos e esvoaçava ao vento enquanto ele arrastava os pés pelos campos. Mas seus olhos eram tão arregalados e seu pescoço tão limpo que ninguém lhe recusava o que pedia. E, ao pedir água, recebia leite. 

De onde você vem?

Do leste, dizia.

E assim sabiam que ele era um idiota e lhe ofereciam refeições como paga por limpar os quintais. 

Ao se curvar com um ancinho sobre o esterco e os grãos pisados, escutou uma voz avolumando-se em seu coração. Enfiou a mão no feno, apanhou um rato, esfregou o focinho do animal e o deixou ir embora. 

Todo dia, a lembrança da árvore assombrava o menino; toda noite, a árvore erguia-se em seus sonhos como a estrela que brilhou sobre o canteiro. Certa manhã, em meados de dezembro, quando o vento das colinas mais distantes soprava impetuosamente ao redor da casa e a neve que caíra de madrugada ainda não derretera nos gramados e telhados, ele correu para o galpão do jardineiro. O jardineiro estava consertando um ancinho quebrado. Sem uma palavra, o menino sentou-se em uma caixa de sementes ao pé dele e o viu amarrar os dentes e teve certeza de que o arame não os manteria no lugar. Olhou para as botas do jardineiro, sujas de neve, para os remendos nos joelhos de suas calças, para os botões abertos de seu casaco e para as dobras de sua barriga sob a camisa remendada de flanela. Olhou para as mãos dele, que davam nós no arame dourado; eram mãos calejadas e bronzeadas, com manchas de terra sob as unhas quebradas e manchas de tabaco na ponta dos dedos. As rugas no rosto do jardineiro estavam ainda mais sulcadas pelo esforço de atar e reatar os dentes de ferro que teimavam em sacudir frouxamente no cabo. O menino teve medo da força e da falta de asseio do velho; mas, ao olhar para a barba longa e espessa, imaculada e branca como a lã, logo se reconfortou. Aquela barba era a barba de um apóstolo. 

Rezei para a árvore, disse o menino. 

Sempre reze para as árvores, disse o jardineiro, pensando no Calvário e no Éden. 

Rezo toda noite para a árvore. 

Reze para as árvores. 

O arame deslizou por entre os dentes. 

Rezo para aquela árvore. 

O arame arrebentou. 

O menino apontava sobre as flores da estufa para a árvore que, única entre todas as árvores do jardim, não tinha vestígio de neve. 

Um sabugueiro, disse o jardineiro, mas o menino se levantou da caixa e gritou tão alto que o ancinho ainda não consertado caiu com estrépito no chão. 

A primeira árvore. A primeira árvore da qual você me falou. No princípio, havia uma árvore, você disse. Eu escutei, o menino gritou.

O sabugueiro é uma árvore tão boa quanto qualquer outra, disse o jardineiro, baixando a voz para consolar o menino.

A primeira árvore de todas, disse o menino em um sussurro. 

Reconfortado pelo tom de voz do jardineiro, ele sorriu para a árvore pela janela e o arame voltou a correr por entre os dentes do ancinho quebrado. 

Deus brota em árvores estranhas, disse o velho. Suas árvores vêm parar em lugares estranhos. 

Enquanto ele contava a história das doze estações da Via Sacra, a árvore acenava com seus ramos para o menino. Uma voz de apóstolo ressoava dos pulmões alcatroados. 

E assim eles o penduraram em uma árvore e enfiaram pregos em sua barriga e seus pés. 

O sangue do sol do meio-dia banhava o tronco do sabugueiro, manchando a casca. 

O idiota estava nas colinas Jarvis, admirando o vale imaculado a seus pés, de cujas águas e relvados a neblina matinal emanava para depois se dissipar. Observou o orvalho se dissolvendo, o gado contemplando o riacho e as nuvens escuras se dispersando aos primeiros raios de sol. O sol voluteava na extremidade do céu rarefeito e aquoso, como um bombom em um copo d’água. Estava sedento de luz quando o primeiro e quase invisível pingo de chuva caiu em seus lábios; arrancou um tufo de grama e, provando-a, sentiu-a verdejar em sua língua. E assim a luz se fez em sua boca, e a luz era um som em seus ouvidos, e a luz dominava o vale que tinha um nome tão peculiar. Ele sabia da existência das colinas Jarvis; seus contornos elevavam-se sobre os declives da região e podiam ser vistos por quilômetros nas redondezas, mas ninguém lhe falara a respeito do vale no sopé das colinas. Belém, disse o idiota para o vale, saboreando os sons da palavra e insuflando-a com toda a glória da manhã galesa. Irmanou-se com o mundo ao seu redor, provou o ar, como um recém-nascido prova e se irmana com a luz. A vida do vale de Jarvis, evaporando do corpo da grama e das árvores e da vasta margem do riacho, infundiu-lhe sangue novo. A noite esvaziara as veias do idiota e o alvorecer no vale as encheu de novo. 

Belém, disse o idiota para o vale. 

O jardineiro não tinha presente nenhum para o menino, por isso tirou uma chave do bolso e disse, Esta é a chave da torre. Na véspera de Natal, eu abrirei a porta para você. 


Antes de anoitecer, ele e o menino subiram a escada até a torre, a chave girou na fechadura, e a porta, como a tampa de um baú de segredos, se abriu e os deixou entrar. O cômodo estava vazio. Onde estão os segredos?, perguntou o menino, erguendo a vista para as vigas descascadas e esquadrinhando os cantos cobertos por teias de aranha e correndo os olhos pelas vidraças embaciadas da janela.

Já basta eu ter lhe dado a chave, disse o jardineiro, que pensava que a chave do universo estava escondida em seu bolso, junto a penas de pássaros e sementes de flores. 

O menino começou a chorar porque não havia segredos. Vezes sem conta, vasculhou o quarto vazio, levantando poeira em busca de algum alçapão encoberto, batendo de leve nas paredes sem revestimento à espera do eco vindo de um cômodo adjacente à torre. Espanou as teias de aranha da janela e viu através da poeira a véspera de Natal coberta de neve. Um mundo de colinas estendia-se até se perder de vista sob o céu nublado, e os cumes de colinas que ele não conhecia erguiam-se em direção aos flocos de neve cadentes. Florestas e rochas, vastos oceanos de terra árida e uma nova onda de céu montanhoso, que arremetia por entre as faias negras, desdobravam-se à sua frente. A leste, destacavam-se as silhuetas de desconhecidos animais monteses e um antro de árvores. 

Quem são elas? Quem são elas? 

São as colinas Jarvis, disse o jardineiro, e assim têm sido desde o princípio. 

Ele deu a mão para o menino e o afastou da janela. A chave girou na fechadura. 

Naquela noite, o menino dormiu bem; havia poder na neve e na escuridão; havia uma música imutável no silêncio das estrelas; havia silêncio no vento inquieto. E Belém estivera mais perto do que ele imaginava.

Na manhã de Natal, o idiota entrou no jardim. Seus cabelos estavam molhados e seus sapatos, rotos e esfarrapados, estavam endurecidos pela lama dos campos. Exausto da longa jornada desde as colinas Jarvis e debilitado pela falta de comida, sentou-se sob o sabugueiro em um cepo que o jardineiro tinha rolado até ali. Cruzando os dedos à sua frente, viu o abandono dos canteiros e as ervas daninhas que se alastravam à beira do caminho. A torre se erguia como uma árvore de pedra e vidro sobre o beiral vermelho. Apertou a gola do casaco ao redor do pescoço quando um vento frio irrompeu e sacudiu a árvore; baixou os olhos para suas mãos e viu que estavam rezando. E, de repente, sentiu medo do jardim, os arbustos eram seus inimigos e as árvores, que formavam uma aléia até o portão, levantavam os braços em horror. O local era elevado demais, sobrepujando as altas colinas; o local era baixo demais, tiritando à sombra do contraforte de uma montanha recém-surgida. Ali, o vento era agreste demais, enfurecido com o silêncio, fazendo com que os galhos do sabugueiro se lamentassem em um salmo judaico; ali, o silêncio palpitava como um coração humano. Sentado sob as colinas cruéis, ouviu uma voz interna exclamar: Por que você me trouxe para cá? 

Ele não sabia por que tinha vindo; ordenaram que viesse e o guiaram pelo caminho, mas não sabia quem eles eram. A voz de um povo elevou-se dos canteiros do jardim e a chuva desabou do céu. 

Deixem-me em paz, disse o idiota, e gesticulou timidamente contra o céu. A chuva está molhando meu rosto, o vento está soprando nas minhas faces. Ele se irmanou com a chuva. 

E foi assim que o menino o encontrou, ao abrigo da árvore, suportando o tormento do temporal com uma paciência divina, deixando que seus longos cabelos esvoaçassem ao léu, com um sorriso triste fixo na boca. 

Quem era aquele forasteiro? Tinha fogo nos olhos, a pele do pescoço sob as pregas do casaco estava nua. Ainda assim, sorria envolto em seus trapos, sentado sob uma árvore no dia de Natal. 

De onde você vem?, perguntou o menino. 

Do leste, respondeu o idiota. 

O jardineiro não mentira e o segredo da torre era verdade; aquela árvore enegrecida e surrada, que só brilhava à noite, era a primeira árvore de todas. 

Mas ele perguntou de novo:

De onde você vem?

Das colinas Jarvis. 

Levante-se e encoste-se na árvore. 

O idiota, sem parar de sorrir, levantou-se de costas para o sabugueiro. 

Estenda os braços assim. 

O idiota estendeu os braços. 

O menino correu o mais rápido que pôde até o galpão do jardineiro e, ao voltar pelos gramados encharcados, viu que o idiota não se movera, continuava de pé, ereto e sorridente, encostado na árvore e com os braços estendidos. 

Deixe-me atar suas mãos.

O idiota sentiu o arame que não consertara o ancinho apertar seus pulsos. Cortou a carne e o sangue das feridas escorreu resplandecente pela árvore. 

Irmão, ele disse. Viu que o menino trazia cravos prateados na palma da mão. 
(tradução desconhecida)
































Todos os livros podem ser, para o leitor, um oráculo,
chegando ocasionalmente a responder a perguntas não formuladas.