terça-feira, 31 de maio de 2016

Grande é a poesia, a bondade e as danças. Mas o melhor do mundo são as crianças.


Flores, música, o luar, e o sol, que peca 
Só quando, em vez de criar, seca. 

(Fernando Pessoa)

A Humanidade deve à criança o melhor que tem para dar.

"Uma educação que nos ajude a pensar e não que nos ensine a obedecer"
A infância vive a realidade da única forma honesta, que é tomando-a como uma fantasia. 
Dia mundial da criança
Este dia começou a comemorar-se em 1950, depois da Federação Democrática Internacional das Mulheres propor às Nações Unidas que se criasse um dia dedicado às crianças de todo o mundo. Este pedido veio no sentido de tentar resolver o problema criado com a 2ª Guerra Mundial, que fez com que a crise atingisse muitos países da Europa, do Médio Oriente e da China, deixando de existir boas condições para se viver. Não havia comida, muitas crianças perderam os pais e outras tantas foram obrigadas a trabalhar para ajudarem nas despesas. Esses trabalhos eram muito duros e durante muitas horas.
Em 1959 foi criada a "Declaração dos Direitos da Criança", com o intuito  de proporcionar a todas as crianças do mundo, uma vida digna e feliz. 
A infância não se repete, nem na lembrança, nem na imaginação. Quando, muito, dá-se outra infância. As cenas ingénuas, porque eram ingénuas, não tinham consciência; e as humilhações, de tão pungentes, não há memória que consinta na sua perfeita expressão.
(Miguel Torga)



(Sebastião Salgado)
Uma pessoa pode ter uma infância triste e mesmo assim chegar a ser muito feliz na maturidade. Da mesma forma, pode nascer num berço de ouro e sentir-se enjaulada pelo resto da vida.
(Charlie Chaplin)

terça-feira, 3 de maio de 2016

Morrer é mais difícil do que parece - o texto de Paulo Varela Gomes, (1952-2016)



Paulo Varela Gomes, libertou-se da lei da morte e está vivo, e estará, enquanto o texto circular e enquanto for lembrado.

A carta de despedida publicada pela Granta , em 10 de Abril de 2015, que não resisto guardar aqui no meu cantinho, pela lucidez, pela forma como enfrentou a morte. Não creio que tivesse metade da  coragem...da força...da doçura...da capacidade de escrever, de exprimir o sofrimento assim.

"Tenho um cancro de grau IV. De cada vez que abro o teclado do computador na intenção de escrever, ocorre-me a frase, já mil vezes repetida, “Quando estiverem a ler estas linhas, é provável que o autor já não esteja vivo”.


São incontáveis os artigos, livros, documentários e filmes sobre pessoas que morrem de cancro. Nunca vi nenhum porque não aguento o stress mas ouvi dizer que alguns são eficientes e fazem os espectadores chorar muito. Não vou escrever aqui um artigo desse género, primeiro, porque não sou capaz, e em segundo lugar porque a história da minha doença e daquilo que tenho feito para lidar com ela tem algumas características muito peculiares que podem interessar a todo o género de pessoas que se preocupam com a vida e a morte e que pensaram com seriedade no tema deste número da Granta: “Falhar melhor”.

Tudo começou quando acordei uma manhã com um inchaço do tamanho de uma amêndoa no lado esquerdo do pescoço. Iludido por uma espécie de incredulidade optimista, pensei que se tratava do resultado de uma infecção nos dentes ou na garganta. Desenganou-me um médico especialista dessas áreas com quem fui falar alguns dias depois: “O senhor tem uma massa na garganta. É melhor ir ver isso rapidamente.” Estava muito grave e sossegado, ele. Percebi depois que nunca lhe tinha passado pela cabeça que alguém não soubesse o que quer dizer “massa” em termos orgânicos. Esta foi a única consulta médica a que a Patrícia, minha mulher e minha “curadoura”, não me acompanhou. Estava a ajudar a Rita a podar as videiras da Vinha Comprida. Quando lhe telefonei a transmitir a seca mensagem do médico, percebeu tudo e diz-me que ficou imenso tempo a olhar lá para o longe, para o pinhal sobre a várzea, com as lágrimas a correr-lhe pela cara.

Quarenta e oito horas depois fiz a obrigatória TAC cervical. Despi-me sem preocupações, coloquei aquela bata ridícula dos hospitais que faz qualquer pessoa parecer que sofre ininterruptamente dos intestinos, deitei-me na máquina. No fundo, esperava boas notícias: não tarda, iriam informar-me de que se tratava de uma chatice menor. Estivemos depois hora e meia debaixo da luz verde escura, crepuscular, da sala de espera. Quando o radiologista veio falar connosco, acabou nesse preciso instante a vida que levávamos juntos há mais de duas décadas. O radiologista tinha a expressão macambúzia de quem apresenta os pêsames a uma família enlutada: cancro na otofaringe com tumor na cadeia linfática cervical posterior e metástases no pulmão. Não operável. Tratamentos em doses muito altas de quimio e radioterapia para, daí a dois a quatro meses, deixar de poder comer ou respirar.

Decidimos que nunca me submeteria aos tratamentos da medicina oncológica, às suas armas: as clássicas (cirurgia), as químicas (drogas) e as nucleares (radioterapia). Estas armas destroem as defesas próprias do organismo e aceleram frequentemente a sua degradação. Já vi suficientes doentes de cancro entregues nas mãos da oncologia para tremer de horror ao pensar que poderia suceder-me o mesmo.

Quando voltámos para casa, não houve uma lágrima, um gesto de desespero, um queixume. Falámos muito pouco. As estradas por onde passávamos tantas vezes pareciam agora ter uma realidade inverosímil, como se fossem pinturas de paisagem antiga. Fazia calor e a luz era branca.

Durou vários dias seguidos, este silêncio emocional. As palavras que trocámos em casa foram reduzidas ao mínimo. Uma consulta com um médico do IPO confirmou tudo o que estava no relatório do radiologista. Mais tarde, algumas instituições com nomes que tilintam como lingotes de ouro vieram dizer-nos o mesmo: não havia nada que valesse a pena fazer.

Essas opiniões não nos importaram, porém. Numa estranha frieza, só quisemos saber o que faríamos para acabar com a minha vida quando essa altura chegasse. A Patrícia jurou que não me impediria de morrer, e até me ajudaria se fosse necessário. Como disse Plotia ao poeta em A Morte de Virgílio de Hermann Broch: “A morte fecha-se a quem está só, o conhecimento da morte apenas se desvenda à união de dois seres.”

Sucede que estes acontecimentos já me parecem um pouco perdidos no nevoeiro do tempo. Passaram mais de mil dias desde a tarde abafada de 23 de Maio de 2012, quando fiz a TAC, até à nebulosa e fresca tarde de Primavera em que estou aqui a escrever isto. Dois anos e onze meses.

Não sei se nesta evolução, que não tem cessado de nos surpreender e a quem nos conhece, podemos adivinhar a lenta condensação de um milagre. Sei que há muita gente a rezar por mim e é com alegria que agradeço a todos.

Mas sei também que tenho recorrido a muitas medidas práticas para evitar a sorte ditada pelos oncologistas.

A primeira foi fazer-me acompanhar, desde algumas semanas depois da TAC, por um médico homeopático (os médicos encartados não acham graça nenhuma a que se chame médico a um homeopata, mas tenham santa paciência). Sob sua orientação comecei por mudar radicalmente de regime alimentar. Em vez de comer produtos tóxicos como faz a maior parte das pessoas, passei a alimentar-se com produtos que ajudam o meu sistema imunitário e alguns que combatem o cancro activamente. Além disso, o médico foi prescrevendo suplementos alimentares e medicamentos homeopáticos.


Devo à homeopatia a qualidade dos mais de mil dias de vida que levo de vantagem sobre os médicos oncologistas. Duas ou três semanas depois de começar a terapia já começava a duvidar de alguma vez ter tido cancro. Imaginem: um canceroso em estado grave, que pouco tempo antes estava arrasado de cansaço e pessimismo, foi à praia! Confesso que tive medo de entrar na água, eu que vivi junto ao mar e mergulhei nas suas ondas vezes incontáveis. Só no segundo dia consegui decidir-me, e foi tão grande a felicidade experimentada no corpo que percebi que a Idade do Gelo em que tínhamos vivido desde o diagnóstico tinha dado lugar a uma Primavera, incerta e frágil, é verdade, cheia de dias de nuvens, mas tempo de viver e não de morrer.

As semanas correram e fomos passear a Toledo, a Burgos, a Viseu. Participei em conferências, orientei alunos, fiz todos os dias companhia à minha mulher e aos nossos seis cães, andei com a minha neta aos saltos sobre os charcos de água da chuva. As minhas análises foram durante muito tempo boas, e o meu aspecto muito diferente da maioria dos desgraçados que frequenta os campos de morte da oncologia. Além disso, como os leitores e leitoras saberão, escrevi e publiquei três romances, uma colectânea de colunas escritas para jornais, e finalizei mais um romance e um livro de contos.

Todavia, não houve um único dia em que não tenha pensado na morte. Nem um. Ao princípio não receei mas também não compreendi essa Senhora de Negro e, portanto, ofereci-lhe de bandeja as inúmeras oportunidades que, demoníaca, busca dentro de nós para nos fazer a vida num inferno ou para nos levar. É verdade que a vontade de viver teve desde sempre mais poder sobre mim do que a desistência perante a morte ou a ida ao seu encontro – já não estaria aqui se assim não fora. Mas vida e morte estão por vezes demasiado próximas e o conflito entre elas que tem lugar no meu espírito é muito antigo e muito complexo. Sou acompanhado por psicanalistas há muito tempo. Aquele com quem trabalho desde há alguns anos, e que é uma das peças-chave do puzzle da minha não-morte, recebeu como uma pancada a notícia do meu diagnóstico e, depois de uma breve conversa entrecortada de angústia e silêncio, lembro-me de lhe ter dito com um ar quase triunfante: “Nem sempre se pode ganhar, doutor…”

Quem é que estava a falar assim pela minha boca? Quem é que experimentava em mim essa estranha alegria raivosa que emergira quando soube que tinha um cancro e que este era incurável? Que força psíquica queria que eu morresse, que as pessoas tivessem misericórdia de mim, se recordassem, me admirassem? Que parte de mim, velha e zangada, se aproveitava assim deste meu narcisismo para me arrastar para a morte?

A vida é muito menos cheia de prosápia do que a morte. É uma espécie de maré pacífica, um grande e largo rio. Na vida é sempre manhã e está um tempo esplêndido. Ao contrário da morte, o amor, que é o outro nome da vida, não me deixa morrer às primeiras: obriga-me a pensar nas pessoas, nos animais e nas plantas de quem gosto e que vou abandonar. Quando a vida manda mais em mim do que a morte, amo os que me amam, e cresce de repente no meu coração a maré da vida. Cada lágrima que me escorre por vezes pela cara ao adormecer, cada aperto de angústia na garganta que sinto quando acordo de manhã e me lembro de que tenho cancro, cada assomo de tristeza que me obriga a sentar-me por vezes à beira do caminho quando vou passear com os cães e interrompe a oração ou a conversa com o céu que me embalava o espírito, cada um destes sinais provém do falhanço momentâneo do amor dos outros em amparar-me, e sobretudo do meu em permitir-lhes que me acompanhem.

Quando, pelo contrário, decorre um dia em que consigo escrever e gosto daquilo que escrevo, em que me curvo sobre os canteiros para cortar ervas daninhas, em que admiro amorosamente a energia da Patrícia sentada ao computador ou a trazer lenha para casa, quando isto sucede, o meu tempo já não é o Tempo Comum mas antes um longo domingo de Páscoa: sinto a presença amorosa de todos os que precisam de mim e d’Aquele de quem eu preciso.

O médico homeopata nunca me prometeu um milagre, e a minha saúde começou a piorar em Janeiro de 2014, cerca de um ano e meio depois do diagnóstico oncológico. Pouca coisa, ao princípio: algumas dores no pescoço, na cabeça e na garganta, mais cansaço, problemas intestinais. Pouco a pouco, desapareceram ou tornaram-se-me impossíveis, um por um, todos os prazeres físicos de cujo timbre e tom já quase me esqueci: o sexo, beber um copo de vinho tinto antes do jantar, fazer uma viagem com mais de duas ou três horas, o gosto da comida sólida a percorrer-me o interior da garganta com os seus variados sabores e texturas, uma corrida com os miúdos ou os cães.

Houve semanas piores, outras melhores, mas o tumor do meu pescoço foi crescendo, rebentou como um pequeno vulcão de pus, e ficou pouco a pouco com um aspecto tão abominável que deixei de aguentar ser eu a mudar o penso todas as manhãs. O terrível panorama estragava-me o dia e a melancólica e repugnante tarefa de cuidar do tumor ficou adstrita à Patrícia, que sabe fazer tudo e não tem nojo de nada. Mais tarde, alternando com ela, começaram a vir regularmente a minha casa as enfermeiras dos serviços continuados de saúde.

E, de repente, ia morrendo: uma grande hemorragia despertou-me a meio de uma noite de Julho de 2014, encharcado no sangue que brotava de uma veia que o tumor do meu pescoço pôs a descoberto e enfraqueceu. Desmaiei imediatamente e a Patrícia, não conseguindo ao princípio acordar-me, pensou que tudo estava acabado.

Ganhei depois, com lentidão e a custo, uma relativa saúde. Passei dias inteiros deitado. Depois, devagarinho, melhorei. Uma nova hemorragia, em Dezembro, embora não tenha atingido a violência da anterior, obrigou-me a considerar uma transfusão de sangue que fiz num hospital que estava, como quase todos nessa época, mergulhado num tal caos que passei um dia simultaneamente divertido e ofendido a observar a desordem que grassava à minha volta.

As duas perdas de sangue fizeram pender a balança para o lado da minha morte interior: regressei à melancolia com que me sentava à sua cabeceira conversando com ela nas duríssimas semanas do Verão de 2012 que se seguiram ao veredicto do cancro. Como é que vou morrer? Exactamente como?, perguntava-lhe.

Não me referia à chamada morte natural, que nunca me tinha ocorrido desde o primeiro dia da doença. Falava da morte infligida por mim próprio.

Entretanto, porém, o cristianismo, que estava quase esquecido desde o meu baptismo, irrompeu pela minha vida através da palavra de um Padre que é outra peça-chave do puzzle, mas desta vez, e ao invés do psicanalista, do puzzle do meu encontro feliz com a morte.

O suicídio é uma ofensa frontal à vontade de Deus que quer que a morte de cada cristão seja a sua disponibilidade para de se entregar à Cruz no momento em que Cristo quiser e da maneira que Ele decidir. Mas eu e a Patrícia tínhamos jurado que eu morrerei aqui, em minha casa, e que nada me fará embarcar no carnaval de luzes da ambulância para ir morrer a um hospital. Esse juramento mantém-se.

Tomámos esta decisão mal tínhamos saído do parque de estacionamento da clínica onde fiz a TAC e ouvi o diagnóstico. No meu espírito doente, a morte celebrava jubilosamente a vitória desse momento e era-me tão impossível controlar ou combater este sentimento como invocar a luz da esperança, encolhida num canto de mim como um miúdo paralisado de terror. Enquanto regressávamos a casa, eu pensava na dificuldade e nos riscos envolvidos no modo como morreu o meu irmão, pensava no salto de uma ponte, pensava na agonia do veneno, na ignorância sobre medicamentos letais, mas sobretudo no facto de que todos estes caminhos da morte ainda concedem ao suicida o tempo suficiente para se arrepender, precisamente aquilo que eu não queria na altura, mergulhado num tumulto mental que julgava mais voluntário e corajoso do que de facto era.

Experimentei por vezes os movimentos da dramatização da minha morte, uma espécie de novela sem invenção e sem vida cujo maior óbice era o de saber se, na altura definitiva, teria a certeza absoluta de não haver outra solução. Conseguiria deitar fora como se fossem trocos sem valor os restos de vida que continuam a cintilar dentro de mim? E se me enganasse? Se não fossem meros desperdícios? Se valessem mais do que a escuridão silenciosa do túmulo onde vou apodrecer?

Aquando da segunda hemorragia, cheguei-me muito próximo de encontrar uma resposta sem alternativa a estas questões. Depois de fechar os cães e de me despedir brevemente da Patrícia, sufocada de pavor e lágrimas, ajoelhada no chão sem conseguir olhar para mim, saí de casa transportando a arma e uma cadeira de plástico onde me sentar com a coronha da arma apoiada no solo. Quase não tinha forças e tremiam-me as pernas. A minha camisa estava empapada em sangue e, tendo passado a mão pela cara e os óculos, vi as árvores, os arbustos, a casa das ferramentas e do tractor, a encosta, a vinha, através de um nevoeiro vermelho. A decisão com que, apesar da fraqueza física, andei sem hesitar algumas dezenas de passos, surpreendeu-me a mim mesmo. Pronto, ia morrer. Aspirei o cheiro intenso, quase ridente, de uma hortelã-pimenta que nascera ao pé do pinheiro grande sem que, até então, alguém tivesse dado por ela. Coloquei a cadeira junto a uns troncos cortados, sentei-me e, já com os canos da arma na boca, o dedo aflorou o gatilho. Senti o metal como uma coisa sem qualidade, cálida, mortiça, dócil. Tudo me pareceu vagamente ridículo, o meu gesto, os objectos de que me rodeara. Veio até mim mais uma vez o cheiro da hortelã. Ergui os olhos que tinha fixados na guarda do gatilho e vi um pinhal que o sol, através de uma abertura nas nuvens, isolava, dourado, do verde-escuro da encosta. Ocorreu-me de repente uma vaga de alegria inexplicável, como se fosse um sinal da presença de Deus à semelhança daqueles que os textos sagrados referem por vezes. Cheguei à mais simples conclusão do mundo: estava vivo e, enquanto assim estivesse, não estava morto. Fiquei verdadeiramente contente, a vida a fervilhar em todas as veias, mesmo as estragadas. Pousei a arma no chão e regressei a casa. Não olhei para trás, para a cadeira branca e a arma, que ficaram ali completamente indiferentes à minha sorte. Ao abrir a porta, a Patrícia, sem conseguir dominar a torrente de lágrimas que lhe corria pelo rosto, caiu-me nos braços. Ficámos muito tempo agarrados um ao outro, quase imóveis, como se fôssemos o tronco de uma grande árvore.

Não há muito mais a contar. A saúde vai piorando pé ante pé.

Deixei para trás a ideia de suicídio por uma razão muito simples que levou demasiado tempo a descobrir. Ei-la nas palavras que Mateus atribui a Cristo (Mt 10, 39), palavras que iluminaram como um relâmpago – e finalmente resolveram no meu coração – a maneira hesitante como lidei com o sofrimento nestes mais de mil dias:


“Aquele que conservar a vida para si, há-de perdê-la; aquele que perder a sua vida por causa de mim, há-de salvá-la”."

S. Domingos, Podentes, 10 de Abril de 2015
Paulo Varela Gomes,
revista GRANTA - n.º5

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Almada Negreiros, Mãe, A invenção do Dia Claro.


Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens! Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar!
Quando voltar, é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
Mãe! Ata as tuas mãos às minhas e dá um nó cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.
Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça, é tudo tão verdade!


Se há figura da cultura portuguesa que individualmente melhor encarne a personagem do artista multifacetado, essa figura é, certamente, a de Almada Negreiros.


Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metade da livraria.
Deve certamente haver outras maneiras de se salvar uma pessoa, senão estou perdido.
No entanto, as pessoas que entravam na livraria estavam todas muito bem vestidas de quem precisa salvar-se.
...

Comprei um livro de filosofia. Filosofia é a ciência que trata da vida; era justamente do que eu necessitava– pôr ciência na minha vida.
Li o livro de filosofia, não ganhei nada, Mãe! não ganhei nada.
Disseram-me que era necessário estar já iniciado, ora eu só tenho uma iniciação, é esta de ter sido posto neste mundo à imagem e semelhança de Deus. Não basta?
...
Imaginava eu que havia tratados da vida das pessoas, como há tratados da vida das plantas, com tudo tão bem explicado, assim parecidos com o tratamento que há para os animais domésticos, não é? Como os cavalos tão bem feitos que há!
Imaginava eu que havia um livro para as pessoas, como há hóstias para cuidar da febre. Um livro com tanta certeza como uma hóstia. Um livro pequenino, com duas paginas, como uma hóstia. Um livro que dissesse tudo, claro e depressa, como um cartaz, com a morada e o dia.
...
Não achas, Mãe? Por exemplo. Há um cão vadio, sujo e com fome, cuida-se deste cão e ele deixa de ser vadio, deixa de estar sujo e deixa de ter fome. Até as crianças já lhe fazem festas.
Cuidaram do cão porque o cão não sabe cuidar de si–não saber cuidar de si é ser cão.
Ora eu não queria que cuidassem de mim, mas gostava que me ajudassem, para eu não estar assim, para que fosse eu o dono de mim, para que os que me vissem dissessem: Que bem que aquele soube cuidar de si!
Eu queria que os outros dissessem de mim: Olha um homem! Como se diz: Olha um cão! quando passa um cão; como se diz: olha uma árvore! quando há uma árvore. Assim, inteiro, sem adjectivos, só de uma peça: Um homem!
...
Mas eu andei a procurar por todas as vidas uma para copiar e nenhuma era para copiar.
Como o livro, as pessoas tinham principio, meio e fim. A principio o livro chamava-me, no meio o livro deu-me a mão, no fim fiquei com a mão suada do livro de me ter estendido a mão.
Talvez que nos outros livros… mas os títulos dos livros são como os nomes das pessoas–não quer dizer nada, é só para não se confundir…
...
Na montra estava um livro chamado «O leal conselheiro». Escrito antigamente por um Rei dos Portugueses! Escrito de uma só maneira para todas as espécies de seus vassalos!
Bendito homem que foi na verdade Rei! O Mestre que quer que eu seja Mestre!
Eu acho que todos os livros deviam chamar-se assim: «O leal conselheiro»! Não achas, Mãe?

O Mestre escreveu o que sabia–por isso ele foi Mestre. As palavras tornaram presentes como o Mestre fazia atenção. Estas palavras ficaram escritas por causa dos outros também. Os outros aprendiam a ler para chegarem a Mestres–era com esta intenção que se aprendia a ler antigamente.
...
Sonhei com um país onde todos chegavam a Mestres. Começava cada qual por fazer a caneta e o aparo com que se punha à escuta do universo; em seguida, fabricava desde a matéria prima o papel onde ia assentando as confidencias que recebia directamente do universo; depois, descia até ao fundo dos rochedos por causa da tinta negra dos chocos; gravava letra por letra o tipo com que compunha as suas palavras; e arrancava da árvore a prensa onde apertava com segurança as descobertas para irem ter com os outros. Era assim que neste país todos chegavam a Mestres. Era assim que os Mestres iam escrevendo as frases que hão-de salvar a humanidade.
...

Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa–salvar a humanidade.
(Fragmentos do livro "A Invenção do Dia Claro")


sexta-feira, 1 de abril de 2016

Chagall e Sebastião da Gama ,para desanuviar e ajudar a acreditar em sonhos...


Para cortar a frieza das notícias trágicas de morte da liberdade e da violência feroz neste nosso mundo...



Sebastião Artur Cardoso da Gama foi um poeta e professor português.Wikipédia

Quando eu nasci,

ficou tudo como estava.

Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.

As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...

Pra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...

(Sebastião da Gama)

Marc Chagall foi um pintor, ceramista e gravurista surrealista judeu russo-francês. Wikipédia



"Canzonetta spirituale sopra la nanna", composed by Tarquinio Merula and performed by Jody Pou and Thomas Dunford, in superb HD quality! Tarquinio…
YOUTUBE.COM




terça-feira, 29 de março de 2016

Neste tempo em que vivemos...(à espera da reinvenção da terra e vida outra)


A minha indignação:

- Pelo sofrimento dos outros, e pelas injustiças que devem ser olhadas e combatidas.
- Pelo grau de desumanidade e o propósito de instalar o ódio e o medo.



"Mas, apesar de tudo, não afastei os olhos, enojados da realidade como de costume; antes confessei heroicamente: "Ena, que feio!"
...
Deixemos o violoncelo da ilusão permanente aos pálidos maricas que, nem na arte, nem no amor, nem nos negócios, nem na política, podem, ao menos uma vez por semana, fitar a realidade sem tergiversar, num destemor de fístulas e vilipêndios."
(José Gomes Ferreira)



Ensinaram-te palavras que pareciam
prontas a derrotar quem as ouvisse
ensinaram-te gestos para elas
e a tal ponto te humilharam
que te puseram de pé
limpo
inteligente
e aprumado
Alexandre O´neill
Utopias e distopias são poderosos exercícios de imaginação que nos ajudam a compreender os erros dos atuais modelos políticos Por José Eduardo Agualusa, do O Globo Comemoram-se este ano os 500 anos da publicação da “Utopia”, de…
GELEDES.ORG.BR

terça-feira, 8 de março de 2016

O Dia Internacional da Mulher e a data de 8 de março...



Para os que pensam que o dia internacional da mulher é uma mera data como tantas outras apropriadas pelo marketing comercial para incentivar a compra de prendinhas , não é.

"No Dia 8 de março de 1857, morreram aproximadamente 130 mulheres carbonizadas, quando foram trancadas na fábrica de tecelagem, em Nova York, onde trabalhavam, por estarem em greve. Em homenagem a estas mulheres, em 1910, declarou-se o dia 8 de março como o “Dia Internacional da Mulher".


"A primeira igualdade, é a justiça".- Victor Hugo, patrono do Conselho Nacional de Mulheres, fundado por Susan B. Anthony .
Mas a JUSTIÇA é também a primeira IGUALDADE !
Já dizia Sólon, "A igualdade não gera guerras."



Vinda de onde sou
eu torno sempre
Parida
De minha própria
afeição
Derrubo o escuro
renascida
Sou fênix do meu mênstruo
Orquídea da minha
vida
Sou mulher
Sou feiticeira
Sou bruxa
No meu abraço
Desobedeço e invento

Insubordino o que faço
(Maria Teresa Horta)
Horror em troca de dignidade...

Poucas pessoas sabem o porque do Dia Internacional das Mulheres. A idéia desse vídeo é resgatar um pouco da história e inaltecer com louvor a todas as mulher...
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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Intenções e ações____La vie en rose!!!



"É no momento que encerra a beleza de um gesto, que se prolonga a vida"
(Maria do Rosário Pedreira)
Há pessoas que gostam de pensar, que até o fazem bem, com profundidade e utilidade. Algumas pessoas escrevem esses pensamentos, para que outros possam refletir sobre eles. Eu, que também gosto de pensar de vez em quando, dei comigo a pensar na intenção sem ação.
É que muita gente tem os propósitos mais nobres e elevados, as melhores intenções, grandes ideias, mas nunca as leva adiante.
 
A intenção é como a Fé: sem obras, torna-se vazia e incompleta.
O inferno está cheio de boas intenções e vontades. Claro que nem toda a gente crê no inferno, o que não quer dizer que não tenha os seus infernos privados.

"Sei lá cantar
a ilusão
dos meus problemas
- sem algemas
no chão.

Sei lá cantar
o que há em mim de sombra mais secreta
sem sentir o peso do planeta
no meu bandolim.
Já não sou eu que canto
- mas o espanto
do homem em mim."
(José Gomes Ferreira, Poeta Militante)


"São outras as paisagens quando alguém
as vê pelas janelas do seu próprio coração ou quando
com esse coração
a própria estrada está comprometida."
(Luís Miguel Nava)

E PAZ NA TERRA aos Homens de boa vontade ! 


quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Nos 100 anos do nascimento de Vergílio Ferreira...


O gesto da criação sou eu que o executo e ninguém mais por mim. 
(Vergílio Ferreira )

"Céu baixo, grosso, cinzento
e uma luz vaga pelo ar
chama-me ao gosto de estar
reduzido ao fermento
do que em mim a levedar
é este estranho tormento
de me estar tudo a contento,
em todo o meu pensamento
ser pensar a dormitar.

Mas que há para lá do sonhar? "

(Vergílio Ferreira )

Em 1954 foi publicado pela primeira vez o conhecido romance Manhã Submersa de Vergílio Ferreira. A obra vegetou durante quase vinte anos até que se tornou bastante conhecida após o 25 de Abril de 1974. Para isso contribuíram três fatores fundamentais: a consideração e fama do autor, o filme realizado por Lauro António e o aproveitamento político da obra como um ataque à Igreja e à educação nos seminários.



"Sentia que o amor era uma luta e que eu, amarrado de preto, não poderia lutar. A bruscos golpes de cólera, eu erguia-me às vezes sobre o meu desalento. E atirado nela, como numa vergasta, parecia-me que era só abrir a mão para colher o meu sonho de liberdade. Mas o meu esforço esgotava-se antes do fim. Então eu recaía para o meu cansaço e sentava-me à beira da estrada a dizer adeus à vida com o olhar."



Filme baseado na obra de Vergílio Ferreira
YOUTUBE


Segundo Eduardo Lourenço, neste livro, o autor procura evidenciar de forma original os aspetos humanos do abandono, medo, inocência, pureza, "infância perdida", enfim, tudo o que um jovem solitário pode sentir diante de um mundo opressor.






































(Sou dada a comemorações literárias, e não é possível ignorar  o autor de "Manhã submersa")