sábado, 21 de março de 2015

No dia livre do pensamento...



"A arte é um esquivar-se a agir, ou a viver. A arte é a expressão intelectual da emoção, distinta da vida, que é a expressão volitiva da emoção. O que não temos, ou não ousamos, ou não conseguimos, podemos possuí-lo em sonho, e é com esse sonho que fazemos arte. Outras vezes a emoção é a tal ponto forte que, embora reduzida a acção, a acção, a que se reduziu, não a satisfaz; com a emoção que sobra, que ficou inexpressa na vida, se forma a obra de arte. Assim, há dois tipos de artista: o que exprime o que não tem e o que exprime o que sobrou do que teve."
(Fernando Pessoa/Bernardo Soares, "Livro do Desassossego")




"Que vês daí, amigo,
bom vizinho?
(...)
Eis o que vês e eu
vejo igualmente.
Grossos cristais desafiam o apetite.
Os cartazes anunciam nas paredes
uma economia aquosa. Os que se submetem
arrastam-se entre a fome e o treponema.
O que os seus dedos tocam
não é a flor, é a prótese.
(Vivemos
na distância dos olhos. Podemos
tocar a sinuosa linha do esforço,
a corda tensa do augúrio. Já fuma
o momento de recusar o medo,
o momento de restituir o prumo
à dignidade.)
(...)
Este cemitério é vasto e sem muros.
Aí nos situamos; e entre nós
há esta só diferença: nós podemos
fazer ainda a vida acontecer."
(Egito Gonçalves, "Poemas políticos")
"Que tristeza tão inútil essas mãos
que nem sequer são flores
que se dêem:
abertas são apenas abandono,
fechadas são pálpebras imensas
carregadas de sono."
(Eugénio de Andrade)